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Capítulo 1 | Capítulo 3


Capítulo 2 - Sonhos de grandeza

   Mesmo prometendo não contar para ninguém sobre o que tinha acontecido naquela noite, o encontro com a Fúria da Noite nunca deixou as memórias dos gêmeos; aqueles olhos verdes e aqueles dentes brancos pareciam gravados em suas mentes.

   Ambos não entendiam por que o dragão não tinha matado os dois ali onde estavam, totalmente vulneráveis. Não fazia sentido… E cada um dos gêmeos reagiu de modo diferente à confusão deixada pela experiência.

   Biscoito, após um tempo com medo de sair de casa, especialmente de noite, um dia decidiu dar uma volta completa e, na primeira vez que saiu de casa sozinha depois do encontro com a Fúria da Noite, ela se armou com um dos menores machados que havia na casa e se dirigiu para a floresta. Soluço a acompanhou uma vez, encontrando a irmã treinando o uso da arma, a lançando contra as árvores de modo desajeitado, mas decidido, mesmo tendo dificuldades para sequer levantar as armas afiadas.

   Quando Stoico descobriu com o que sua filha se ocupava quando tinha tempo livre, ele sorriu de orelha a orelha e exclamou para toda a ilha ouvir que sua filha podia finalmente treinar com os outros vikings da sua idade. Valka concordou com um sorriso gentil e pequeno, mas parecia distante, talvez um tanto surpresa com a mudança de Biscoito de uma garotinha tímida e hesitante, em alguém tão decidida e confiante.

   Soluço se sentiu um pouco desconfortável com a mudança, além de ficar com um pouco de inveja da irmã mais nova. Ele ainda não conseguia levantar um martelo sem perder o equilíbrio e não importava o quanto Biscoito explicava para ele como ela fazia as coisas, ele não conseguia fazer o mesmo. Pelo jeito ele ia ter de continuar na ferraria de Bocão enquanto sua irmã seguia em outra direção.

   Tentando não deixar que aqueles sentimentos o remoessem, Soluço se focou no que ele era bom. Com nove primaveras, Soluço já se encontrava fazendo e afiando as melhores espadas e machados de Berk, então pelo menos era melhor do que nada…

   Com o passar do tempo, Soluço se perguntou se Biscoito usava o treinamento para tentar esquecer o que tinha acontecido. Ele se lembrava do modo como ela estava tremendo naquela noite…

   Enquanto isso, Soluço sentia que nunca poderia esquecer aquele encontro e, honestamente? Ele não queria esquecer. Valka ocasionalmente contava sobre como ele e a irmã tinham medo de dragões quando eram mais novos e ele ousaria dizer que, até aquela noite, ele ainda tinha medo. Ironicamente, agora, depois de encontrar um dragão tão misterioso cara a cara, Soluço se encontrava mais curioso do que temeroso.

   E qual não foi sua sorte em encontrar outra pessoa que parecia dividir aquela curiosidade. Perna-de-Peixe, era um garoto robusto que morava não muito longe da casa de Soluço, ele vinha de uma família de guerreiros fortes, mas também de grande cérebro; ele já tinha lido o Manual do Dragão umas três vezes e sabia tanto sobre dragões quanto Soluço. Era bom ter alguém com quem conversar sobre aquele tema, mas não era como se eles tivessem muito para falar sobre Fúrias da Noite, não haviam registros sobre aquele tipo de dragão, e Soluço ainda não tinha coragem de dividir o pouco que tinha visto.

   Os ataques de dragões aconteceram como sempre tinham acontecido e Soluço sentia sua pele se arrepiar cada vez que ele ouvia aquele assovio que todos reconheciam como o som de uma Fúria da Noite se preparando para atirar. Mas ele nunca mais viu o dragão…

   Quando Biscoito aprendeu bem a usar um machado, ela se tornou encarregada de cuidar da casa e do irmão gêmeo, o que incomodava Soluço, mas ninguém lhe daria ouvidos caso ele retrucasse, ele sabia. Então ele passava a maior parte do tempo no quarto que ainda dividia com a irmã, sozinho, enquanto Biscoito ficava no andar de baixo, perto da porta e da escada; ela dizia que enquanto cuidava da área de baixo da casa, Soluço cuidava do andar de cima, só para fazê-lo se sentir mais útil.

   E era assim que Soluço se encontrava durante mais um ataque, olhando pela janela para ter certeza de que nenhum dragão ia atacar por cima, mas não estava totalmente focando no trabalho. Ele suspirou, ainda se sentindo um pouco irritado depois da discussão que tinha tido com Biscoito alguns minutos antes. Ele fez uma careta para o quarto, se perguntando se podia pedir para seus pais se seria possível colocar alguma coisa para separar a sala em dois, um canto para ele e um para sua irmã.

   Soluço voltou a atenção para a janela.

   Ele podia ouvir o som de luta no lado de fora, mas parecia diferente dessa vez. Soluço já tinha visto vários ataques de dragões em sua vida e ele notou que parecia haver bem menos dragões dessa vez…

   Talvez fosse um bom sinal…?

   Um baque surdo o fez pular. Ele tremeu, erguendo o olhar. Alguma coisa tinha pousado no telhado da casa!

   — A-ah…! Tá bem, tá bem…! — Soluço correu para o canto da sala, onde sua irmã havia deixado um de seus machados pequenos para ele. Era pesado, mas ele conseguia levantar. — Calma, Soluço… Você consegue fazer isso, você é um viking!

   Mesmo com a cacofonia do lado de fora, ele pôde ouvir o som da madeira gemendo acima dele, como se alguém estivesse andando lentamente no telhado, se dirigindo até a janela.

   Soluço prendeu a respiração.

   O som parou…

   E então uma forma escura apareceu na janela.

   — Ah! — Soluço não conseguiu segurar um grito baixo e surpreso. Era uma cabeça enorme e escura, quase camuflada contra o céu noturno, o encarando de ponta-cabeça com olhos grandes e esverdeados.

   O garoto só pôde encarar de volta.

   — Soluço! — Ele ouviu os passos da irmã subindo a escadaria rapidamente, mas antes que ela pudesse chegar, o dragão ergueu a cabeça e sumiu. — O que foi? Está tudo bem?

   Soluço hesitou, mantendo os olhos na janela. Ele não sabia o que pensar. Por um momento se perguntou como a irmã reagiria ao saber do retorno da Fúria da Noite… Mas ao desviar os olhos para o machado afiado que Biscoito carregava, ele decidiu não mencionar tal coisa.

   — Não foi nada, Biscoito… — Ele disse por fim, abaixando o machado. — Um dragão passou voando perto da janela, eu achei que ia atacar a casa… Mas ele não ligou pra gente…

   Biscoito suspirou e sorriu levemente para o irmão.

   — Obrigada por me assustar! — Ela lhe deu um leve soco no ombro, era brincalhão, mas ainda assim forte. Soluço ficava dividido entre ter inveja ou ficar com orgulho da força da gêmea mais nova. — Mas obrigada por avisar também. Eu fico de olho. Você também fica, e com o machado nas mãos!

   — Ah, hehe, é claro! Pode deixar…! — Soluço ergueu o machado, tentando mostrar pouca dificuldade, mas sem muito sucesso, e só soltou quando sua irmã sumiu escada abaixo mais uma vez.

   Soluço se virou para a janela, mas ela continuava vazia.

   O pequeno viking respirou fundo e caminhou até o canto do quarto com passos lentos e hesitantes. Ele inclinou a cabeça sobre o batente da janela, olhando para cima, mas o dragão não estava lá; ele abaixou o olhar, mas o dragão também não estava no chão.

   — Hum…? Foi embora…? — Ele suspirou, soltando o ar que nem notou que segurava. Sentia como se seu coração quisesse saltar de seu peito.

   Soluço estava em conflito, feliz em ainda estar vivo, mas ainda mais curioso. Ele não sabia se aquele era o mesmo dragão do encontro anterior, mas aquilo só deixava tudo mais confuso. Por que o dragão não tinha atacado?

   Ele só esperava que o dragão não fizesse aquilo de novo numa outra noite…

—o—

   Aquela foi a última vez que Soluço viu uma Fúria da Noite de perto.

   Os ataques continuaram como sempre e Soluço se encontrou passando mais e mais tempo dentro da ferraria durante aquelas noites, afiando machados e espadas. Ele tentava fazer um bom trabalho, preparando tudo para os vikings impacientes que vinham até ele, mas sempre que ele ouvia aquele rugido, ou aquele sibilar alto seguido por um som de explosão, ele se encontrava deixando o trabalho de lado, olhando para além da janela para tentar ver o dragão negro.

   O vulto de uma Fúria da Noite contra a luz laranja de uma explosão era tudo o que a maioria dos vikings já tinha visto daquele dragão, e, pelo jeito, era só o que Soluço iria ver a partir de então.

   Soluço decidiu que aqueles dois encontros com o dragão não passaram de coincidências.

   Mas… Talvez não fossem. Talvez fossem um sinal…! Ao mesmo tempo que Soluço não queria criar expectativas, ele não conseguia deixar de pensar naquela possibilidade. Talvez a Fúria da Noite significasse alguma coisa, talvez os deuses quisessem dizer algo sobre o futuro do pequeno viking… Um futuro de grandeza talvez? Quem sabe, Soluço se tornaria o primeiro viking a matar uma Fúria da Noite!

   Com o passar do tempo, essa possibilidade foi aos poucos perdendo a força.

   Se o dragão era um sinal para alguém, esse alguém era sua irmã.

—o—

   — Soluço! — A voz do viking chamou a atenção do garoto, que estava olhando pela janela. — Espada! Afie! Agora! — Soluço agarrou a espada e rapidamente se dirigiu para a pedra de amolar.

   — Pode deixar! — Ele tomou cuidado, mas fez o trabalho rapidamente, como sempre fazia. Logo a lâmina estava perfeita, afiada do jeito certo. — Aqui está!

   Bocão, o ferreiro, agarrou a espada e a entregou para o dono, antes de pegar um machado recém-chegado, atirando-o para o garoto com as mesmas instruções.

   Os dragões haviam retornado e o típico caos na vida dos vikings de Berk tinha retornado. Fogo, gritos, dragões e armas afiadas, como sempre acontecia há tantas gerações. Soluço tinha apenas onze primaveras, mas se ele contasse quantas vezes já tinha visto aquele cenário, não-vikings pensariam que ele tinha vivido por décadas.

   E, assim como em tantos outros ataques, Soluço se mantinha dentro da ferraria.

   Mas isso não queria dizer que ele não queria sair.

   Soluço sabia da importância de seu trabalho, Bocão não podia fazer tudo sozinho, mesmo com seus membros intercambiáveis. E poucos dos outros vikings tinham interesse em ficar dentro da cabana protegida da ferraria, não, eles preferiam ficar lá fora, colocando suas vidas em perigo, mas ajudando o resto da tribo. Soluço era um dos poucos que ficava por lá, e não inteiramente por desejo próprio.

   Ele queria sair, pegar um daqueles machados e matar um dragão!

   Bem, para falar a verdade, Soluço não queria matar nada, mas ele sabia que só assim o resto da tribo iria respeitá-lo. Talvez ele recebesse o mesmo respeito que sua irmã recebia. Talvez ele até arranjasse uma namorada ou namorado!

   — Ei! — Uma voz tirou Soluço de seus pensamentos e ele se virou para o rosto longo e sardento de sua irmã. — Olá, você, trabalhador!

   — Oi, Biscoito. — Soluço notou que o machado de sua irmã estava em cima do balcão. — Quer que eu afie?

   — Por favor. — Biscoito disse, empurrando a arma para o gêmeo que se pôs a trabalhar. — Está uma loucura aqui fora! Você tem sorte de ficar aí dentro onde é seguro!

   Soluço soltou um leve bufar de zombaria.

   — Ah, sim claro, muita sorte… — Disse, focando na lâmina do machado. — Você e os outros é que tem sorte… O trabalho de vocês é tão mais maneiro… — Ele parou por um momento. — Espera, você não está na brigada de incêndio? Porque está com um machado?

   — Shiu! — Biscoito tentou calar seu irmão.

   — Me pergunto a mesma coisa… — Bocão se intrometeu, tirando o machado das mãos de Soluço. — Os seus pais disseram que você podia sair por aí com isso aqui

   — Qual é! Eu já posso matar dragões! — Biscoito reclamou. — Já sou forte o bastante!

   Ela tentou tirar o machado das mãos do ferreiro, mas não teve sucesso quando esse ergueu seu braço alto demais. Soluço tentou não rir da situação da irmã, uma vez que Bocão às vezes fazia isso com ele também. Bocão começou a repreender a garota, antes de levar o machado para outro canto da sala, ainda falando alguma coisa sobre “sem permissão de Stoico, sem chance” ou algo assim.

   — Biscoito! — Uma voz feminina chamou. Os gêmeos se viraram, e Soluço sentiu um leve calor tomar conta de suas bochechas ao encarar sérios olhos azuis. — A gente precisa da sua ajuda! Vem logo!

   — Tá! Eu já vou, Astrid! — Biscoito revirou os olhos, se voltando para Bocão mais uma vez, para pedir que lhe devolvesse o machado novamente, mas o ferreiro já ocupado demais com outros vikings. Mas Soluço ainda estava ali. O garoto deu uma olhada em Bocão, antes de fazer um sinal de silêncio para a irmã e passar o machado de volta para ela. A garota sorriu. — Valeu, Soluço.

   — Mostra pra eles como se faz… — Soluço sorriu para a irmã.

   Honestamente, ele ainda tinha ciúme da irmã, mas de que adiantava ser um chato? No final do dia os dois tinham que voltar pra mesma casa, dormir em camas idênticas em um quarto que dividiam.

   — Enguia! — A voz alta de Valka surpreendeu os gêmeos. — Saia do caminho!

   Um Nadder, cuja asa parecia machucada, estava correndo na direção da ferraria, guinchando alto, mas aparentemente sem fogo para cuspir.

   Soluço instintivamente se escondeu atrás do balcão da ferraria, enquanto sua irmã não tinha lugar em que se esconder. Mas não era como se Biscoito fosse fazer isso. Ela rapidamente agarrou o machado ainda em cima do balcão, segurando-o firmemente em suas mãos e, assim que o Nadder chegou perto o bastante, Biscoito lançou o machado na direção do dragão, atingindo-lhe o lado da cabeça. O Nadder cambaleou e quase perdeu o equilíbrio. Ele se voltou para a pequena viking e guinchou alto. Biscoito atacou mais uma vez, atingindo o dragão do outro lado da cabeça. Dessa vez o Nadder caiu e um grupo de vikings se lançou em cima do animal, o impedindo de se levantar.

   Soluço piscou uma ou duas vezes, processando o que tinha acontecido.

   Sua irmãzinha tinha mesmo…?

   — Enguia! — Valka alcançou a filha. Ela rapidamente começou a examinar a garota, como se ela tivesse sequer tido a chance de se machucar. Soluço observou enquanto sua mãe tirava o machado das mãos da garota, lançando-o para o lado com uma expressão azeda.

   — Mãe, eu tô bem… — Biscoito reclamou.

   — Eu te disse para me ajudar a apagar o fogo! — Valka a interrompeu, segurando a filha pelos ombros. — Não para sair por aí com esse machado!

   — Mas eu posso ajudar a lutar contra os dragões! — Biscoito retrucou. — Eu sei usar o machado já, mãe!

   — Ela sabe, mãe… — Soluço se intrometeu, embora soubesse que fazendo isso, ele acabaria com tantos problemas quanto sua irmã.

   Valka lançou um olhar estranho para seu filho, o que o fez se calar. Valka podia ser uma mulher sensível, mas nunca era bom forçar a barra, e os gêmeos sabiam disso melhor do que ninguém.

   — Pelo menos você faz o que é mandado, Soluço… — Ela suspirou, balançando a cabeça. — … Às vezes… — Completou.

   — Sua honestidade é comovente, mãe… — Soluço murmurou baixinho, e aparentemente sua mãe não ouviu, ou então o ignorou.

   Valka pegou o machado jogado no chão e o colocou de volta no balcão, pedindo para que Bocão o colocasse longe do alcance de sua filha. Então colocou uma mão nas costas de Biscoito, a empurrando para longe da ferraria, falando que precisavam se apressar para cuidar das outras casas ainda em chamas.

   Soluço não entendia bem por que sua mãe tinha reagido desse jeito ao ver a filha lutar contra um dragão, mas às vezes não dava para entender a esposa do chefe de qualquer jeito.

   Stoico, ao ouvir a história, soltou um exclamar de celebração, falando alto sobre como sua filha se tornaria uma grande matadora de dragões. O resto da tribo reagiu do mesmo modo.

   É… A grandeza parecia estar reservada para Biscoito. Não para Soluço.

   Mas quem realmente sabe qual é a vontade dos deuses?

Durante o resto do ataque, Soluço ficou olhando pela janela. Ele viu um vulto negro passar frente as estrelas.


Capítulo 1 | Capítulo 3


Disclaimer: A série Como Treinar o Seu Dragão e seus personagens pertencem à Dreamworks Animations, Dean DeBlois, Chris Sanders e Cressida Cowell. Essa é uma produção de fã para fã e sem fins lucrativos.

Todos os personagens aqui presentes possuem mais de 18 anos de idade.


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